Estudos epidemiológicos examinaram a relação entre fatores ambientais que alteram o microbioma intestinal na infância e a relação com a alergia alimentar. O tipo de parto, o uso de antibióticos e o tipo de alimentação têm sido fatores amplamente estudados.
Hipótese da higiene
A noção de que a exposição precoce a microrganismos pode influenciar positivamente nossa saúde imunológica remonta pelo menos a 1989, quando David Strachan, então epidemiologista da London School of Hygiene and Tropical Medicine, formulou a hipótese da higiene. Com base em dados observacionais, Strachan propôs que crianças que crescem em lares menores e mais limpos são mais suscetíveis a distúrbios alérgicos.
Nas décadas seguintes, a hipótese da higiene evoluiu para um modelo centrado no microbioma, no qual a exposição precoce aos microrganismos desempenha um papel crucial na mitigação do risco de desenvolver condições inflamatórias como asma, febre do feno e eczema, bem como alergias alimentares. Esses distúrbios compartilham raízes comuns em termos de disfunção imunológica, e muitas crianças que desenvolvem uma alergia alimentar experimentarão outras condições inflamatórias à medida que envelhecem.
Tipo de parto
No geral, há evidências de que o parto cesárea aumenta o risco de desenvolver sensibilização por IgE a alérgenos alimentares, contribuindo para o desenvolvimento de alergia alimentar.
Está claro que o perfil da microbiota intestinal é moldado pelo tipo de parto. A possível explicação para o parto cesárea aumentar o desenvolvimento de alergias é que ao não passar pelo canal vaginal no parto, onde a colonização pela microbiota materna normalmente ocorreria, o bebê nasce por meio de uma superfície estéril, atrasando o desenvolvimento da microbiota intestinal ou sendo colonizado por um perfil microbiano natural da pele, e não o do canal vaginal.
A microbiota difere entre os bebês nascidos por cesariana e os nascidos por via vaginal durante o primeiro ano de vida, mostrando enriquecimento de Bifidobacterium spp. e redução de Enterococcus e Klebsiella spp. em recém-nascidos de parto vaginal. A composição da microbiota na primeira semana de vida está associada ao número de infecções no primeiro ano do bebê. As bactérias associadas a essas infecções são mais abundantes em crianças nascidas por cesariana, proporcionando uma possível ligação entre o tipo de parto e a suscetibilidade a desfechos infecciosos.
Em um trabalho publicado na revista Nature, os autores analisaram amostras de fezes de 903 crianças entre 3 e 46 meses de idade através do sequenciamento do gene 16S rRNA e sequenciamento metagenômico.
Os autores descrevem que o microbioma intestinal em desenvolvimento passa por três fases distintas de progressão: uma fase de desenvolvimento (3-14 meses), uma fase de transição (15-30 meses), e uma fase estável (31-46 meses). O modo de nascimento foi significativamente associado ao microbioma durante a fase de desenvolvimento, impulsionada por níveis mais elevados de espécies de Bacteroides (particularmente B. fragilis) em bebês nascidos por parto vaginal.
Bacteroides foi associado ao aumento da diversidade intestinal e maturação, independente do modo de parto.
Um estudo realizado pela Universidade de Stanford, em 2008, examinou o impacto dessa diferença no microbioma e no desenvolvimento de doenças alérgicas e descobriu que crianças nascidas de cesariana diminuíram a diversidade microbiana e reduziram as respostas Th1 durante os primeiros dois anos de vida.
Corroborando com esses dados, Jakobsson e colaboradores (2014), analisaram o padrão de colonização intestinal pós-natal de 24 lactentes, dos quais 15 nasceram por via vaginal e 9 por cesariana. A microbiota intestinal foi caracterizada usando pirosequenciamento do gene 16S rRNA em 1 semana e 1, 3, 6, 12 e 24 meses após o nascimento. Além do sequenciamento, o sangue venoso foi coletado para análise dos níveis de quimiocinas associadas às respostas Th1 e Th2 ao longo dos 2 anos. Os autores concluíram que os indivíduos nascidos de parto cesárea foram associados a uma menor diversidade microbiana intestinal, colonização tardia do filo Bacteroidetes e respostas Th1 reduzidas durante os primeiros dois anos de vida.
A composição da microbiota intestinal na infância é afetada por vários fatores e os eventos colonizadores iniciais na criança são provavelmente muito importantes determinando o tipo de bactéria comensal (bactérias que vivem no organismo) presente nos primeiros dias de vida e nos meses seguintes. Conforme explicamos no PostBlog anterior, as bactérias comensais no intestino podem desempenhar um papel na indução de tolerância oral aos antígenos dietéticos. A prevalência de algumas espécies em detrimento de outras pode estar envolvida com uma modulação negativa do sistema imune.
Anita Kozyrskyj, epidemiologista da University of Alberta em Edmonton, Canadá, trabalhou extensivamente com o estudo da coorte Canadian Healthy Infant Longitudinal Development - CHILD (estudos de coorte fazem parte de grupos de estudos observacionais em uma população previamente definida). Um esforço de vários anos para investigar fatores associados a doenças imunológicas em mais de 3.500 crianças. Em um estudo de 2015, sua equipe realizou o sequenciamento do gene 16S em amostras fecais coletadas aos 3 meses e 1 ano, de 166 bebês na coorte CHILD. O sequenciamento revelou padrões na microbiota de crianças que posteriormente foram diagnosticadas com alergia alimentar, como uma maior abundância de bactérias da família Enterobacteriaceae em relação às da família Bacteroidaceae.
Uso de antibióticos
O uso generalizado de antibióticos parece ser um dos principais contribuintes a levar a microbiota saudável à disbiose. Muitos antibióticos são receitados para tratamento de infecções virais, portanto podem causar danos ao microbioma em desenvolvimento, sem propósito. Em um estudo de 2004, os autores demonstraram uma conexão entre antibióticos e alergias alimentares. Esse experimento também revelou que o receptor Toll-Like 4, um receptor de células imunes, parece prevenir o aparecimento de alergias em resposta a sinais gerados pelo microbioma.
Pesquisadores da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health em parceria com o Centro de Pesquisa em Saúde Geisinger Health System, nos Estados Unidos (2017), analisaram as associações do uso de antibióticos no início da vida com a ocorrência subsequente de alergia alimentar e outras alergias na infância, usando dados de registros de prontuários eletrônicos. Foi utilizado dados longitudinais de 30.060 crianças de até 7 anos de idade. Os pesquisadores observaram associações entre prescrição de antibióticos e doenças alérgicas. Crianças com três ou mais pedidos de antibióticos tiveram maiores chances de alergia ao leite, alergia alimentar não láctea e outras alergias, em comparação com crianças sem prescrição de antibióticos.
Alimentação
Os mecanismos exatos pelos quais a dieta e os metabólitos bacterianos podem alterar a incidência de alergia alimentar permanece pouco conhecida. E embora a microbiota em desenvolvimento inicial seja amplamente influenciada pelo tipo de parto, a alteração temporal é afetada principalmente por padrões alimentares (leite materno ou fórmula, alimentos naturais ou processados). O papel central da nutrição no início da vida no desenvolvimento da microbiota intestinal, na imunidade e no metabolismo oferece estratégias promissoras para prevenção e tratamento de doenças.
O recebimento de leite materno, exclusivo ou parcial, foi o fator mais significativo associado à estrutura do microbioma, de acordo com o trabalho de Stewart e colaboradores (2018). A amamentação foi associada a níveis mais elevados de espécies de Bifidobacterium (B. breve e B. bifidum) e a cessação do leite materno resultou em maturação mais rápida do microbioma intestinal, conforme marcado pelo filo Firmicutes.
Em um estudo prospectivo para examinar a relação detalhada entre a dieta infantil, a dieta materna durante a gravidez e o desenvolvimento do microbioma intestinal infantil em uma população multiétnica usando técnicas de sequenciamento, os autores concluíram que a associação mais forte foi entre amamentação versus alimentação com fórmula. Os bebês amamentados tiveram contagens mais altas de gêneros considerados benéficos, como Bifidobacterium, Lactobacillus e Clostridia.
De acordo com pesquisadores do Asian Institute of Gastroenterology, em lactentes alimentados com fórmula, Enterococcus, Enterobacteria, Bacteroides, Clostridia e outros Streptococcus anaeróbios dominam o nicho intestinal. Em contrapartida, em lactentes amamentados, Bifidobacterium e Lactobacillus são os gêneros mais prevalentes e o leite materno contém glicanos não digeríveis denominados oligossacarídeos do leite humano, que são facilmente decompostos por essas bactérias. A falta de Bifidobacterium está associada à desregulação imunológica e desenvolvimento de alergias e doenças autoimunes.
Um estudo sobre a dieta infantil relatado por diários alimentares revelou que a ingestão alimentar de altos níveis de frutas e vegetais está associada à redução da incidência de alergia alimentar em crianças de 2 anos de idade. Os autores sugerem que os ácidos graxos de cadeia curta, produzidos pela fermentação das bactérias intestinais a partir das fibras dietéticas, podem desempenhar um papel na prevenção da alergia alimentar.
O aumento nos números de parto cesárea, a falta de amamentação, o consumo elevado de alimentos ultraprocessados, cuidados de higiene excessivos, dieta pobre em fibras, o uso indiscriminado de antibióticos - todos esses são fatores que influenciam negativamente a microbiota intestinal, podendo causar uma desregulação no sistema imunológico (conforme abordamos no post anterior), sendo possíveis responsáveis pelo aumento dos casos de alergias aos alimentos.
Conhecendo a microbiota intestinal
A avaliação da microbiota intestinal pode ser realizada pela identificação de bactérias através do sequenciamento de DNA. Informações sobre a relação delas com as condições clínicas podem ser valiosas para o profissional da saúde na definição da sua conduta clínica. O teste PRObiome, desenvolvido pela BiomeHub, utiliza a tecnologia de sequenciamento do gene 16S rRNA, extraindo material genético a partir das fezes do paciente. É um teste seguro, não invasivo, e pode ser realizado por qualquer pessoa, uma vez que coletado o material, basta enviar via correio ao nosso laboratório para análise.
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